PEDRO CUNHA
coisas pequenas
Uma memória ecoa – para lá do que é uma memória; uma lembrança de uma memória, uma história de uma lembrança, a lembrança de um testemunho.
Era uma tarde quente, então abríamos as janelas da varanda, mas deixávamo-nos ficar dentro da cozinha; onde corria uma brisa e as moscas formavam aqueles remoinhos típicos dos dias quentes de verão – andam às voltas em pequenos grupos, pequenos pontos negros no ar -, como nós, procuram o lugar mais fresco. Quando se fazia silêncio era isso que se ouvia, as moscas, às voltas.
O silêncio era profundo porque o que estava a ser dito, contado, tinha o peso do tempo, da sabedoria e da insignificância – eram coisas pequenas.
Deixávamos as luzes apagadas para enganar o calor, uns copos de Sumol e um de vinho branco ajudavam; ocupavam a mesa – aquele espaço simbólico de partilha e do bem receber – onde nunca faltou uma cadeira e um prato. A pouca luz realçava as palavras da história; palavras mal escritas, mal soletradas; palavras ditas com a pronúncia de quem sabe pouco menos de tudo aquilo que é preciso saber para fazer felicidade. Coisas pequenas – diz-nos ela – coisas pequenas.
As mãos acompanham o ritmo das palavras, mas contavam a sua própria historia; e as cicatrizes provam-no. As cicatrizes, as rugas, as unhas, os gestos provam-nos que a história era verdadeira. Verdadeiro no mínimo no seu sentimento; bastante falsa no que toca a verossimilhança com a realidade genérica e colectiva – como qualquer boa história.
Ela conta a história que lembrou mil vezes e que contou outras mil. E mil vezes nós a ouvimos; com o pouco entusiasmo de quem pensa que existirá sempre a milésia primeira.